Janelas com vidro duplo

13.5.20

Janelas com vidro duplo

Janelas com vidro duplo

Em dezembro, fui ao Brasil depois de quase dois anos. Um mês inteiro de cutucões e esbarrões, como uma longa sessão de acupuntura com mais agulhas que o necessário. Ainda assim, voltei para Singapura incomodada mesmo com um adesivo que vi na parede do Museu Paço do Frevo. Era uma coisinha simples, um daqueles textos que falam um pouco sobre a exposição. Ao entrar no museu, lembrei com vergonha ter imaginado o espaço como a sala de artes do meu colégio. Encontrei, em vez disso, um casario reformado e bonito, com piso de madeira, estandartes com franjas e milhares de lantejoulas enfeitando o chão. Mas logo ali na parede, uma frase inteira se descolava e se enrolava, exibindo o vinil escuro das partes internas, cheias de poeira. Deslizei a perninha de uma letra A com o dedo. Vai, fica aí, gruda de novo. É como se Recife nunca pudesse ter uma coisa boa, feito alguém que acaba de comprar um celular chique e quebra a tela antes de colocar a película.

Algumas semanas antes da viagem, bati perna atrás de suvenires para minha família. É difícil explicar Singapura e pensei que um pedaço de madeira entalhado ou um tecido bonito pudessem me ajudar a traduzir o lugar onde vivo. Não achei nada. Embarquei com uma mala cheia de cremes de marcas australianas e porta-copos desenhados no Photoshop. Singapura é um lugar onde os adesivos nas paredes dos museus não perdem a cola e embolam, um lugar onde até os remendos são invisíveis. Um dia, fui ao salão e reparei que a recepcionista usou liquid paper na minha ficha de cadastro. Ao pegar o papel para assinar, não consegui encontrar a rasura.

Aqui, há quatro meses, preenchíamos formulários com nossos históricos de viagem e tirávamos nossa temperatura em troca de estrelinhas coloridas que nos autorizavam a entrar em um restaurante ou um empresarial. Há dois, estamos em casa. Passo os dias na varanda, estirada em um tapetinho barato de ioga. Leio muito pouco, não tenho paciência. Tento clarear o cabelo com um spray tipo Blondor e testo maquiagens que comprei pela internet e que largam partículas brilhosas nas dobras do tapetinho. Torço por um deslize, para que um adesivo se desprenda das paredes dos meus vizinhos como quem espera por um gol em uma partida desanimada. Moramos em apartamentos com pés-direitos tão altos que reclamamos da dificuldade de comprar cortinas, já que não podemos reclamar das crianças do andar de cima que derrubam dezenas de bolinhas de gude no chão. Nossas janelas tem dupla vedação e nos fecham a vácuo em nossos próprios quartos. Penso em Recife e em como lá tudo acontece ao mesmo tempo. O cheiro do almoço e do lixo, as mensagens de áudio e o programa de auditório no volume máximo, as buzinas dos carros parados atrás do carrinho do vendedor de queijo e o alto-falante do vendedor de queijo. A vida dos outros entra em nossas casas pelo buraco da caixa do ar-condicionado e pelas frestas das portas que tentamos tapar com panos de chão.

Estirada na varanda, às vezes escuto um desenho animado em chinês e conversas de negócios em francês. Há dois dias ouvi o cachorro do argentino que mora ao lado latir pela primeira vez. Eu já tinha visto o cachorro no elevador, mas não lembrava dele. Em algumas tardes, alguém acende um incenso bom. Em outras, alguém acende um incenso com cheiro de perfume barato. As notificações do cotidiano são raras e eu, em total abstinência, passei a achar que as pessoas tem o dever de me avisar que estão vivas, que ainda escutam música e refogam cebola às onze e meia da manhã. Espero por vida, aqui não tem vida, reclamo não muito convencida, como reclamo das janelas difíceis de fechar. Então a noite chega e as pessoas no Brasil acordam e me mandam gráficos no WhatsApp, matérias sobre aplicativos que rastreiam e conectam os infectados. São mensagens que perguntam "é verdade isso?" e que me mostram "que incrível, olha quanta vida tem aí."

Vou então admitindo que há vida no silêncio, uma confissão que machuca porque a mim parece uma traição à beleza do caos, do movimento, da imperfeição. As coisas não se anulam, tanta gente tem tentado me explicar. Mas é que eu tenho esse medo horrível de, um dia, ao me deparar com uma lantejoula descosturada em um estandarte, não resistir e perguntar: se estão todos vivos por que não consertam? Imagino uma reunião de condomínio nas Graças em que, como uma vendedora de Herbalife, tento convencer os moradores a instalar janelas com vidro duplo. Vamos dormir melhor, viver melhor, insisto porque sei que as janelas são mesmo ótimas.


Gritos em inglês e ruído branco

26.8.19

Gritos em inglês e ruído branco

Gritos em inglês e ruído branco

1. Quando saí do Recife para Curitiba, e depois do Recife para São Paulo, descobri que as pessoas não entendiam o que eu falava. “Pode repetir?”, “O que você disse?”, “Deixa que eu apresento o trabalho.” Era como se quisessem me mostrar que as palavras do mini-dicionário Aurélio que ganhei na quarta-série e decorei com adesivos do ursinho Pooh tinham sido impressas de um jeito diferente. Trocadas. Embaralhadas. Um erro da gráfica que eu não tinha notado em todos esses anos. 

2. Nunca mais tive vontade de voltar. Tenho amigos que viajam ao Recife a cada 4 meses, de tanta saudade. Eu não sinto saudade de lá. Recife faz parte de mim como uma predisposição genética a gostar de coentro ou ter câncer de pele. As ruas nos mapas plastificados que minha mãe guardava no porta-luvas do carro são como registros em um Livro Caixa de um tropeção na porta do curso de inglês, de uma discoteca em um salão de festas com azulejos marrons. Morro de saudade do meu pai, isso sim, de conversar com meu pai na mesa da sala. Meu pai não é uma cidade.

3. São Paulo não é parte de mim, mas como sinto saudade de São Paulo. Dos bares que não me formaram, nomes de rua sem muito significado, linhas de ônibus que nunca me levaram para canto algum. É preciso ter um lugar bem entranhado dentro da gente, como uma tatuagem nos órgãos, como Recife, para só então nunca mais sentir falta dele. 

4. Em Singapura, sou eu que não entendo o que as pessoas falam. O inglês me faz arregalar os olhos e balançar a cabeça no caixa do supermercado ou no restaurante. E aí, o garçom repete devagar “Está-pronta-para-pedir, senhora?” do mesmo jeito que eu repetia frases simples aos paulistanos e aos curitibanos. 

5. Confundo as palavras o tempo inteiro. Chamo platéia de audiência. Inchado de inched. Não consigo traduzir o substantivo incômodo de um jeito que me deixe satisfeita. Brigo com os sons, me recuso a aceitar o significado de alguns verbos, tanta coisa ainda parece errada. Todos os dias pesquiso a tradução de quatro ou cinco expressões que já conheço, mas que nunca dão as caras no córtex frontal quando preciso. 

6. Os singapurianos não se preocupam em me corrigir. Não vale a pena, logo vou embora, vamos todos embora. Depois vem outros, que já desembarcam com o bilhete da volta nas mãos. É por isso que São Paulo se incomoda e tenta a todo custo se desvencilhar de quem chega: lá, a gente fica. 

7. Tentei aprender italiano usando um aplicativo em inglês. Pior ideia.

8. Outro dia, o dr. Sunderaraj arrancou um pedaço do meu dedão no bisturi. Nas trocas de curativo, nunca consegui avisar que os cutucões doíam. “It's hurting” demorava demais. “Stop” tem muitas consoantes, sai chiado no desespero. Quando tentei “no, no, no!”, duas enfermeiras apareceram para me segurar. “Ai, ai, ai” e ninguém me levou a sério. Mais tarde, acabei perguntando a uma menina da agência: “Como vocês gritam em inglês?” 

9. Não sei se vou sentir saudade daqui. Enquanto cobre as orelhas e canta “la-la-la-la” para não me ouvir, São Paulo conta umas histórias meio doidas, umas mentiras engraçadas. São Paulo tem assunto que não acaba mais. Singapura, ao contrário, escuta com atenção, mas parece desconfiar de que nunca vou entender direito o que ela tem para dizer. 

10. Hoje procurei reportagens do NETV no YouTube e deixei rolando a tarde inteira, como ruído branco. Homens e mulheres falavam sobre matrícula escolar, bancos em greve e artesanato com fios de telefone. Enquanto isso, li amostras de livros na Amazon, rabisquei essas notas no verso de um briefing e consegui juntar algumas palavras em português pela primeira vez em muito tempo.

June

3.4.18

June

June

June é bem alta para uma chinesa. “Minha avó é inglesa”, foi logo me dizendo no dia em que chegou. Eu já estava na agência fazia umas duas semanas e fiquei impressionada com ela. June estudou na Inglaterra por quatro anos e tem um sotaque britânico que é a coisa mais confortável que ouvi em um mês e meio. Quando ela fala – e ela gosta de falar – eu não desvio o olhar envergonhada por não entender e até faço perguntas. June tem uma gata idosa que acabou de perder o olho esquerdo. “So sad” falei. “It’s ok now” e me ofereceu um biscoito de limão com chocolate que agora procuro em todos os supermercados. Na mesa dela tem também mangas desidratadas, duas latas de café com cereja, uma caneca feia de Harry Potter e mais uma meia dúzia de embalagens plásticas barulhentas que ela tirou de uma sacola de pano no segundo dia de trabalho. Eu, que passei uma semana tentando não existir, mastigando bolachas baixinho, só consegui pensar em como ela é mesmo uma menina bacana. June encomenda a ração da gata pelo telefone e escolhe os sabores salmão e atum. June  faz uns desenhos bonitos no bloco de papel que pediu emprestado ao estagiário, usa as canetas do chefe e escuta música com meus fones de ouvido. Ela já me contou toda a história do país, me mostrou imagens do velório do primeiro-ministro no Google e disse que quando ficou sabendo da morte foi até a Embaixada de Singapura em Londres para assinar um livro de condolências. “Não sei porque, mas fui”, e ri engraçado antes de colocar balinhas de menta na palma da minha mão. Na véspera do feriado, June me chamou para almoçar em um Hawker Centre* e me fez experimentar vários pratos típicos. Eu e mais três pessoas – com quem só comecei a falar depois que ela chegou – colocamos todo o nosso dinheiro na mão dela e corremos em fila indiana pela praça de alimentação. June apontava para as bancas de comida, fazia os pedidos e providenciava os pagamentos com uma velocidade impressionante. Provei uma mistura de omelete com tapioca mole, noodles frito, sopa de peixe e sorvete de soja. June anota em um papelzinho todos os lugares que eu devo conhecer, pratos que devo pedir e trens que devo pegar. Entrada, prato principal e sobremesa. Linha Azul, Saída A. Até hoje ela nunca errou e os pedaços de papel se acumulam no fundo da minha bolsa. June às vezes usa pó compacto em excesso porque ter a pele extremamente branca é uma obsessão na Ásia. Tento não julgar e mantenho uma lista mental de explicações sobre biquínis de fita isolante, caso um dia ela pergunte. June me ensinou a fazer um caminho mais curto para casa, que também é o caminho da casa dela. Agradeci e inventei uma desculpa para continuar fazendo o percurso antigo. Eu gosto muito dela, mas detesto pegar o metrô acompanhada.

* Hawker Centres são praças de alimentação de comida local com preços muito baixos.