June

3.4.18

June

June

June é bem alta para uma chinesa. “Minha avó é inglesa”, foi logo me dizendo no dia em que chegou. Eu já estava na agência fazia umas duas semanas e fiquei impressionada com ela. June estudou na Inglaterra por quatro anos e tem um sotaque britânico que é a coisa mais confortável que ouvi em um mês e meio. Quando ela fala – e ela gosta de falar – eu não desvio o olhar envergonhada por não entender e até faço perguntas. June tem uma gata idosa que acabou de perder o olho esquerdo. “So sad” falei. “It’s ok now” e me ofereceu um biscoito de limão com chocolate que agora procuro em todos os supermercados. Na mesa dela tem também mangas desidratadas, duas latas de café com cereja, uma caneca feia de Harry Potter e mais uma meia dúzia de embalagens plásticas barulhentas que ela tirou de uma sacola de pano no segundo dia de trabalho. Eu, que passei uma semana tentando não existir, mastigando bolachas baixinho, só consegui pensar em como ela é mesmo uma menina bacana. June encomenda a ração da gata pelo telefone e escolhe os sabores salmão e atum. June  faz uns desenhos bonitos no bloco de papel que pediu emprestado ao estagiário, usa as canetas do chefe e escuta música com meus fones de ouvido. Ela já me contou toda a história do país, me mostrou imagens do velório do primeiro-ministro no Google e disse que quando ficou sabendo da morte foi até a Embaixada de Singapura em Londres para assinar um livro de condolências. “Não sei porque, mas fui”, e ri engraçado antes de colocar balinhas de menta na palma da minha mão. Na véspera do feriado, June me chamou para almoçar em um Hawker Centre* e me fez experimentar vários pratos típicos. Eu e mais três pessoas – com quem só comecei a falar depois que ela chegou – colocamos todo o nosso dinheiro na mão dela e corremos em fila indiana pela praça de alimentação. June apontava para as bancas de comida, fazia os pedidos e providenciava os pagamentos com uma velocidade impressionante. Provei uma mistura de omelete com tapioca mole, noodles frito, sopa de peixe e sorvete de soja. June anota em um papelzinho todos os lugares que eu devo conhecer, pratos que devo pedir e trens que devo pegar. Entrada, prato principal e sobremesa. Linha Azul, Saída A. Até hoje ela nunca errou e os pedaços de papel se acumulam no fundo da minha bolsa. June às vezes usa pó compacto em excesso porque ter a pele extremamente branca é uma obsessão na Ásia. Tento não julgar e mantenho uma lista mental de explicações sobre biquínis de fita isolante, caso um dia ela pergunte. June me ensinou a fazer um caminho mais curto para casa, que também é o caminho da casa dela. Agradeci e inventei uma desculpa para continuar fazendo o percurso antigo. Eu gosto muito dela, mas detesto pegar o metrô acompanhada.

* Hawker Centres são praças de alimentação de comida local com preços muito baixos.

Um mês é muito

20.3.18

Um mês é muito

Um mês é muito

Cheguei faz um mês. Parece pouco. Pessoas com carteira assinada saem de férias por um mês, ao menos por enquanto. Em um mês, dá pra gostar tanto de um lugar que algumas dessas pessoas acabam ficando e abrindo uma pizzaria meio hippie, outros compram um chalé meio cafona e voltam todos os anos. Em um mês, dá pra gostar mais ou menos e dar o lugar por visto. Ou não gostar nada e nunca mais querer voltar. Um mês também é muito. Depois de um mês, os descontentes retornam agradecidos à própria privada encardida, ao ralo da pia que só escoa com ajuda de uns macetes, mas que os lembram o tempo inteiro de que finalmente estão em casa.

Quando me perguntavam se não era uma pena vender todos os móveis, eu até pensava no contraste colorido do tapete persa com o piso de taco da sala, na xilogravura de J. Borges que veio errada e que era bonita mesmo assim, nos criados-mudos de altura perfeita (procurei por meses). Eu gostava da minha casa, mas estava tudo bem. O choque da mudança chegou nas lembranças do varalzinho bambo e pequeno que acabei doando. Pensei apavorada nas vezes em que lavei mais roupa do que ele comportava e no tempo que demorei até chegar ao número ideal de peças em cada lavagem. Dez camisas e quatro bermudas. Cinco camisas, cinco vestidos e dois cachecóis. Aproveitamento máximo do varalzinho. Risco mínimo de mofo. Quantas equações como essas eu precisaria fazer pra me sentir dona da minha casa nova? Pra que cada imperfeição se tornasse um conforto?

Entrei no apartamento recém-alugado pensando que precisava dar um jeito de gostar dele. Se gostasse rápido, tudo seria mais fácil. Sem o trabalho de enfrentar novos cálculos e sem correr o risco de não conseguir resolvê-los. Eu só precisava gostar da vista, do caminho até o metrô, da mesinha de cabeceira de 12 dólares que desliza pra lá e pra cá mesmo com antiderrapantes de 15 dólares nos pés. Eu precisava conseguir gostar. E mesmo gostando muito de muitas coisas, eu precisava gostar mais. Um dia, saí pro trabalho depois de uma noite mal dormida e pensei que tudo o que mais queria era deitar na minha cama, aquela bem ao lado do criado-mudo esquiador, mas que só precisa de um empurrão leve com o dedão do pé pra voltar ao seu lugar. Então, eu acho que vai ficar tudo bem.