Gritos em inglês e ruído branco

26.8.19

Gritos em inglês e ruído branco

Gritos em inglês e ruído branco

1. Quando saí do Recife para Curitiba, e depois do Recife para São Paulo, descobri que as pessoas não entendiam o que eu falava. “Pode repetir?”, “O que você disse?”, “Deixa que eu apresento o trabalho.” Era como se quisessem me mostrar que as palavras do mini-dicionário Aurélio que ganhei na quarta-série e decorei com adesivos do ursinho Pooh tinham sido impressas de um jeito diferente. Trocadas. Embaralhadas. Um erro da gráfica que eu não tinha notado em todos esses anos. 

2. Nunca mais tive vontade de voltar. Tenho amigos que viajam ao Recife a cada 4 meses, de tanta saudade. Eu não sinto saudade de lá. Recife faz parte de mim como uma predisposição genética a gostar de coentro ou ter câncer de pele. As ruas nos mapas plastificados que minha mãe guardava no porta-luvas do carro são como registros em um Livro Caixa de um tropeção na porta do curso de inglês, de uma discoteca em um salão de festas com azulejos marrons. Morro de saudade do meu pai, isso sim, de conversar com meu pai na mesa da sala. Meu pai não é uma cidade.

3. São Paulo não é parte de mim, mas como sinto saudade de São Paulo. Dos bares que não me formaram, nomes de rua sem muito significado, linhas de ônibus que nunca me levaram para canto algum. É preciso ter um lugar bem entranhado dentro da gente, como uma tatuagem nos órgãos, como Recife, para só então nunca mais sentir falta dele. 

4. Em Singapura, sou eu que não entendo o que as pessoas falam. O inglês me faz arregalar os olhos e balançar a cabeça no caixa do supermercado ou no restaurante. E aí, o garçom repete devagar “Está-pronta-para-pedir, senhora?” do mesmo jeito que eu repetia frases simples aos paulistanos e aos curitibanos. 

5. Confundo as palavras o tempo inteiro. Chamo platéia de audiência. Inchado de inched. Não consigo traduzir o substantivo incômodo de um jeito que me deixe satisfeita. Brigo com os sons, me recuso a aceitar o significado de alguns verbos, tanta coisa ainda parece errada. Todos os dias pesquiso a tradução de quatro ou cinco expressões que já conheço, mas que nunca dão as caras no córtex frontal quando preciso. 

6. Os singapurianos não se preocupam em me corrigir. Não vale a pena, logo vou embora, vamos todos embora. Depois vem outros, que já desembarcam com o bilhete da volta nas mãos. É por isso que São Paulo se incomoda e tenta a todo custo se desvencilhar de quem chega: lá, a gente fica. 

7. Tentei aprender italiano usando um aplicativo em inglês. Pior ideia.

8. Outro dia, o dr. Sunderaraj arrancou um pedaço do meu dedão no bisturi. Nas trocas de curativo, nunca consegui avisar que os cutucões doíam. “It's hurting” demorava demais. “Stop” tem muitas consoantes, sai chiado no desespero. Quando tentei “no, no, no!”, duas enfermeiras apareceram para me segurar. “Ai, ai, ai” e ninguém me levou a sério. Mais tarde, acabei perguntando a uma menina da agência: “Como vocês gritam em inglês?” 

9. Não sei se vou sentir saudade daqui. Enquanto cobre as orelhas e canta “la-la-la-la” para não me ouvir, São Paulo conta umas histórias meio doidas, umas mentiras engraçadas. São Paulo tem assunto que não acaba mais. Singapura, ao contrário, escuta com atenção, mas parece desconfiar de que nunca vou entender direito o que ela tem para dizer. 

10. Hoje procurei reportagens do NETV no YouTube e deixei rolando a tarde inteira, como ruído branco. Homens e mulheres falavam sobre matrícula escolar, bancos em greve e artesanato com fios de telefone. Enquanto isso, li amostras de livros na Amazon, rabisquei essas notas no verso de um briefing e consegui juntar algumas palavras em português pela primeira vez em muito tempo.